sexta-feira, dezembro 25, 2009

O amor é tramado.

A história de amor do meu avô é uma história deveras banal. Um funcionário das finanças, pelo seu vigésimo aniversário, conhece professora regente que foi, já não sabe a mando de quem, pedir meia folha selada. Na altura os carimbos figuravam nas pontas do papel que seria, então, cortado, a meio. Teria então a professora regente de Felgueiras, que viria a ser muitos anos depois minha avó, o seu meio papel selado, não fosse o meu avô, um funcionário de finanças, um charlatão. Galanteou-a com a subtileza de um mestre de esgrima, deu-lhe a mão com a seriedade de uma raposa. Na altura, explicou-me o meu avô, era deprimente para um jovem rapaz, na casa dos seus vinte e um, andar com uma mulher que fosse, vá, desfazada. Diz-me ele, hoje, que desfazada queria então dizer mulher-que-anda-com-uns-quantos. O que hoje tão vulgarmente se chama de nomes mais sujos, mais cheios e ilustrativos, era então disfarçado com meia dúzia de sílabas díficeis. A minha avó não era uma senhora dessas, gaba-se o meu avô, enquanto me conta a sua história de amor. Recomeça muitas vezes, às vezes o meu avô esquece-se de contar coisas importantes e volta ao ponto de partida para que perceba a sua história, deveras banal. Um funcionário das finanças, que viria a ser meu avô, apaixona-se pela professora regente da freguesia, então sem tenções de ser avó, num casual encontro já não se sabe a mando de que abençoada alma. A meia folha selada foi o pretexto para mais encontros. A minha avó usou tantas desculpas tantas quantas pôde para ir às finanças, diz o meu avô, gabando-se, que quantas vezes ela fora comprar papéis sem qualquer importância. Queixa-se a minha avó que na altura muito trabalhou para ter escudos para esses papéis, de muita importância!, exclama desculpando-se. Interrompe muitas vezes o meu avô, gesticula muito que essas histórias não interessam, que estás a maçar a miúda, João. O avô faz ouvidos de mercador, chega-se mais para perto de mim, continua a explicar-me como já conhecia a irmã da minha avó sem saber. Parece que ela trabalhava no mesmo edificio, na contabilidade, sussurra-me que era uma depravada. Parece que, naquele tempo, depravada tinha o mesmo significado que tem nos dias de correm:
- Vê lá tu que foi dizer à tua avó que me namorava!
- E namoravam?
- Não! Ela é tola.. já o era, na altura.
Rio-me baixinho, é quase um sorriso tremido. O meu avô cerra muito os seus olhos azuis para me dizer que sou afortunada por não herdar a toléria do lado paterno. Conta-me como agarrou a mais bonita das irmãs, minha avó, com o seu jeito de esgrima e raposa.
- Tinha muitas mulheres atrás de mim!
- Bonitas, 'Vô?
Sorri um sorriso malicioso, foca um ponto no espaço que não vejo. Não está mais comigo na sala, parece espairecer para outro tempo. Um onde muitas mulheres o perseguem, clamando aos seus olhos muito azuis que são filhas de patrões e donas de muitas terras. A pergunta paira no ar, a minha avó chama-me ao telefone. É a tal tia, tola depravada sua irmã, que me pergunta se já tenho noivo em vista. Respondo, educadamente, que não senhora, ainda não me caso este ano. Talvez para o próximo. O meu avô, no sofá, regressou à sala, muitos anos mais velho e sem garotas suas seguidoras, gesticula mudo que a mulher é tola. Já o era, no tempo em que se apaixonou pela minha avó. Diz o meu avô que então para se casar foi tramado. Gosto da maneira como pronuncia palavras às quais não está muito habituado. Tramado é uma delas, coisa de gente nova que ouve nas bocas dos filhos, nas bocas dos netos e do senhor Jorge do quiosque da frente, quando quer falar do seu Sporting. Carrega nas sílabas, como se não se quisesse enganar:
- Casar com a tua avó foi tra-ma-do.
Explica-me porquê. Ao que parece o pai da minha avó era um senhor de poder e nome, nascera num berço de ouro mas nada dera a nenhum dos seus. Exigia pouco de si, mas demandava a todos o céu e os mares. Imaginava as suas doze filhas noivas de humildes farmacêuticos, doutores cujo tratamento nunca fosse abaixo do Vossa Excelência. Pois nem a minha avó, sua filha, era excepção, nem o meu avô, então funcionário das finanças, a nenhum dos requesitos bastava.
- Escrevi muito à tua avó - relata com orgulho - mas chegou o dia de enfrentar o pai dela.
Na minha cabeça fértil, terei herdado um pouco da toléria paterna, vejo o meu avô altissimo e envergando uma espada, descendo de um cavalo soberbo. Leva a mão ao peito de cada vez que diz o nome da minha avó ao esperado sogro e promete conquistas de terras estrangeiras e bom vinho em troca da sua mão. Mas como a história de amor do meu avô foi uma história deveras banal, parece que tudo ficou arranjado num jantar a três. Coisa moderna, das que se ouvem na boca de filhos, na boca de netos e na da D. Ana da farmácia, quando quer dizer que a sua Júlia lhe apresentou o namoro.
- Quero casar com o João, pai.
Tratarem-se pelo nome próprio é a prova inusitada que, noutro tempo, tiveram intimidade para carinhos mais próprios, mais seus. Gaba-se o avô que sim, que tinham tratos carinhosos. Vai a dizer quais mas a avó interrompe, que a miúda não precisa de saber tanto, gesticula muito e cora mais ainda.
Rio um sorriso tremido, comovido. Não acho a sua história banal. É de amor - no fundo, nunca o poderia ser.

5 comentários:

  1. adoro histórias com paginas amareladas.

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  2. È uma bela história. Há mesmo muitas diferenças para os dias que correm.

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  3. concordo com o Nuno, é uma belissima história! :)

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  4. que história queriida Joana Éme. faz-me falta um ter um avô, gostava muito.

    reparei agora que, sem qualquer propósito parece que abri o meu mais recente blog, que já tenho há algum tempo, parecido com este. nao foi mesmo por mal Joana Éme, não foi.


    mil e muitas saudades tuas
    madu

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  5. Como eu desejava ter tal "banalidade" na minha vida.

    Parabéns pelo blog, Marie e Joana.
    ( Penso que já falamos uma vez, gosto muito do que escreves, por isso decidi seguir. ;) )

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