quarta-feira, novembro 25, 2009

Uma noite na cidade.

Quando ele toca à companhia ainda não estou bem pronta. Vou ao espelho duas vezes, perfumo-me no entretanto. O quarto está uma bagunça, experimentei dezenas de conjuntos e acabei por optar pelo primeiro que tinha vestido. Umas calças pretas justas, as botas altas da estação do ano anterior, uma camisola decotada e a gabardine azul. O decote deixa um pouco a desejar, mas talvez ele seja um daqueles homens que alegremente se diz ser de "poucas mamas". Tivera um namorado assim, uma pérola de rapaz, está visto. Antes que me pergunte se pode subir, digo que estou já a descer, não vá ele ver a confusão do meu quarto e o nervosismo parado frente ao espelho largo do hall. Desço as escadas, pego nas chaves de casa. É dos sons que acho mais desvalorizados e é dos que mais gosto: o metálico das chaves umas nas outras, suspensas e baloiçando. Atiro-as para a mala e vou abrir o portão para o ver encostado ao carro. O seu corpo recostado chama a atenção como um ponto de exclamação. Embora não apoie nem incite o hábito de fumar a ninguém, o vício assenta-lhe bem. Deita fora a beata, aproxima-se para me cumprimentar. Está um pouco mais reservado que o habitual, dir-se-ia que a noite o intimida. Talvez seja o meu decote, a deixar um pouco a desejar. Sorrio e não faço cerimónias de princesa, entro no carro num ápice. Quando arranca tínhamos trocado poucas palavras, a noite estava intimidante. A humidade estava no ponto, não deixava chover mas justificava o ter trazido a gabardine e não estava tanto frio como nas noites anteriores. Costumo rezingar com velocidades acima dos limites e curvas apertadas, mas a sua habilidade para manobras casa bem com a segurança com que cruza os carros na estrada - deixo-me levar. A noite está no ponto, até com poucas palavras. Leva-me por caminhos que conheço de cor e olho-os com a atenção de quem nunca os vira antes. Acabaríamos por passear pela cidade velha, os varandins empoleirados sobre as nossas cabeças perscrutam a conversa que nasce sem cerimónias reais. Falo um pouco depressa demais, cerro os olhos e mordo o lábio inferior quando quero perguntar se o chateio com as minhas novidades de quem vende água sem caneco. Ele segura um copo de brandy que pedira num bar e dou conta que a vodka que bebi ao balcão me arde no peito. Receando que me encandeie os seios, fecho mais a gabardine e coro com o pensamento - que estupidez, Joana. Verdade seja esta, quando estou nervosa dá-me para pensar palermices e não sei bem o porquê da inquietação. Talvez seja da vodka, mas qualquer coisa me diz que é capaz de ser do seu corpo alto, chamando a atenção do meu peito como um ponto de exclamação. Ele sorri. O meu peito fala depressa e arde. O meu peito arde como uma cidade velha em chamas, uma beata que ainda fervilha na beira de um passeio.
No regresso a casa vamos mais devagar, menos contra a lei. Não me pergunto se estará reticente em deixar-me ao portão se a noite o intimida. Sorrio, olho-o como se o soubesse de cor. A noite está no ponto, vejo-o agora.

4 comentários:

  1. gosto tanto destes episódios, destas tuas histórias Joana Éme

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  2. Tenho a mesma opinião da madu, adoro ler estes teus episódios, que escreves dando tudo o que sentias mas, ao mesmo tempo, como se colocasses quem lê dentro da história.

    Joana, por vezes - e acredita que são mesmo muitas - também perco a fé. Mas não há outra solução do que continuarmos a tentar, mas sempre o cuidado de nos protegermos até encontrarmos o que queremos. Quando tal acontece, há que agarrarmos em todas as forças que temos guardadas e rezar que dê certo. A recompensa faz valer o esforço, e o mundo torna-se um lugar mais habitável. Não desistas Joana.

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  3. gostei tanto deste texto Joana. a tua escrita é soberba e os teus relatos também :) *

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  4. Contigo a escrever, vejo tudo a acontecer ;)
    e até rimei XD

    beijinho Joana
    és muito especial*

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